26.2.07

 

O Horror no Cinema Americano

Este Sábado, ou seja, ontem à noite, à roda da meia-noite, ao percorrer os 4 canais da Televisão Portuguesa, tive a oportunidade de comparar dois tipos de cultura cinematográfica, mais do que isso, talvez mesmo dois tipos de civilização.

Dos três filmes que àquela hora passavam, dois americanos e um francês, os primeiros, O Monstro/Monster e Desespero/Desperation, mais recentes, de 2003 e 2006, respectivamente; o terceiro, o francês, La Femme d’à Coté/A Mulher do Lado, de 1981.

Duas escolas, duas sensibilidades, dois tipos de cultura, ali podemos reconhecer, ainda que estejamos a comparar filmes de épocas diferentes, distanciadas de mais de vinte anos.

Aqueles dois filmes americanos evidenciavam com exuberância a fase de violência festiva, estupidamente inútil, de pura brutalidade e desespero, por que presentemente passa a sociedade ocidental, na sua extremada versão americana, porventura não de uma forma tão exacerbada como os seus filmes a pretendem representar, mas, mesmo assim, capaz de inspirar preocupação e fundado receio a um qualquer observador, ainda não completamente rendido à fealdade do terror quotidiano das ditas mais avançadas sociedades do planeta.

Tudo ali visava excitar ou chocar o incauto espectador: a imoralidade, a violência física, mental e verbal, a degradação dos caracteres das personagens, a boçalidade dos ambientes, uma explosiva mistura para um autêntico pavor de fim do mundo, uma espécie de antevisão do fim da civilização euro-americana, tal como a conhecíamos até há uma época recente.

Nem lá faltavam os famigerados cães, ferozes e ameaçadores, para aterrorizarem os presos, encerrados nas suas celas de grades abertas. O mais era sangue, gritaria, violência, tiroteio desbragado e quase só destruição: a habitual composição de marca dos modernos filmes americanos.

Que imenso caminho já percorrido, podemos comprovar, desde o belo cinema americano das décadas douradas de 40 a 60-70 do século XX, até à actual orgia de violência e brutalidade por que enveredou a filmatografia norte-americana.

Para nossa maior amargura ainda, um pouco por todo o lado, este horrível paradigma cinematográfico vai sendo persistentemente macaqueado, com o triste e difuso empobrecimento cultural que daí resulta.

É impossível que tal processo ocorra sem consequências nocivas na mentalidade de quem consome semelhante mixórdia cultural. Anos sucessivos, horas intermináveis de visionamento destes sórdidos produtos, impropriamente designados culturais, arruínam, corrompem, até à medula, a consciência cívica e moral de qualquer ser humano.

Depois disto, todos os absurdos comportamentos do Homem são possíveis, na paz e, pior ainda, na guerra. Não nos espantemos, pois, das atrocidades dos militares americanos no Iraque, onde a prática da violência gratuita, sádica, mesquinha e, bastas vezes, desnecessária encontrou aí o seu apropriado campo de aplicação.

Não guardo ideia de algo de semelhante se ter passado antes, mesmo no auge do horror do Vietname. Creio que, entretanto, avançámos demasiado no desastroso caminho da brutalidade e da sua consequente cegueira moral.

A avaliar pelos resultados, já hoje bem perceptíveis, a Televisão e o Cinema americanos devem ser considerados dois dos grandes, talvez os maiores, factores de imbecilização e embrutecimento do género humano, na sociedade contemporânea, em contraponto com o seu enorme desenvolvimento científico e tecnológico, de resto, grandemente desaproveitado.

Já o outro filme de que falei, o francês, La Femme d’à Coté/A Mulher do Lado, de 1981, do realizador François Truffaut, com as notáveis interpretações do típico gaulês, Gérard Dépardieu, e da insinuante Fanny Ardant, apesar do seu desfecho trágico, transporta-nos agradavelmente a outro grau de civilização.

Todo o filme decorre num ambiente cordato, mas complexo, de contraditórias emoções acentuadas pelo conflituoso psiquismo das personagens, acabando por gerar insanáveis dificuldades nas relações dos dois casais, subitamente em crise.

No entanto, todo este universo de emoções se vai desenrolando, sempre dentro de um ameno quadro civilizacional, de completa normalidade, condizente com o visível conforto material em que as personagens vivem.

Foi por este estimulante filme que, ontem, salvei a minha noite tardia de Televisão, cada vez menos, o passatempo ou a companhia que procuro e muito menos recomendo.

Cabe, por isso, perguntar : que ganharemos nós outros, europeus, latinos ou anglo-saxónicos, teutónicos, nórdicos ou eslavos em culturalmente nos americanizarmos até à indistinção, abandonando a nossa especificidade, a nossa sensibilidade estético-cultural, copiando mecanicamente um modelo social, cultural e civilizacional, todo ele profundamente atingido de múltiplas taras alienantes, absolutamente degradantes de qualquer arquétipo de vida decente anteriormente conhecido, inclusive dos próprios americanos ?

Custa assim tanto reconhecer o óbvio ?

AV_Lisboa, 25 de Fevereiro de 2007

Comments:
A dizer de Truffaut, "dizer cinema americano é um pleonasmo". Penso que tudo o cinema é pior hoje que no passado. Concentrar o emfoque no americano ten, amigo, certo prejudicio político arrepiante.
Porem os seriales americanos están no mellor momento: The west wing é um prodigio. Isto também é cinema.
 
Sinto necessidade de fazer um esclarecimento : nenhum preconceito me move contra os EUA, essa terra mítica de todos os sonhadores, que de todos os cantos do Mundo um dia a demandaram, cada um em busca do seu imaginado eldorado. Porém, justamente por essa minha ausência de preconceito e porque tenho esse país em boa estima, me confrange assistir a tão nociva mutação cultural que vai desgraçando a grande nação americana e a nós, europeus, nos arrasta também nessa decadência de civilização, hoje iniludível, a caminho não se sabe de que precipício…
 
Perdi o contacto com o cinema há muitos anos. E agora vou lá uma ou duas vezes por ano e, quase sempre, dou por mal empregado o dinheiro do bilhete.
Daí eu não comentar propriamente o seu artigo.
Mas ainda bem que escreveu o esclarecimento sobre a cultura americana.
Com os seus defeitos, aliás compreensíveis num país tão grande e tão diversificado, o melhor que se produz nas artes, letras, ciência e tecnologia está lá.
Tive o privilégio de estudar dois anos lectivos nos EUA e guardo desse tempo as melhores recordações. Nunca o meu trabalho de estudante me rendeu tanto.
Tenho imenso respeito e admiração por essa grande Nação, embora discorde profundamente da sua política, especialmente a externa.
Mas isso é outra conversa.
 
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